Ponte no ES que serviu de 'torre' para moradores vigiarem chegada da lama da barragem do Fundão hoje 'vê' um Rio Doce doente
Mesma repórter foi à ponte Jones dos Santos Neves, de onde a população viu a chegada da lama chegar de Mariana ao ES em 2015. Dez anos após o rompimento da...
Mesma repórter foi à ponte Jones dos Santos Neves, de onde a população viu a chegada da lama chegar de Mariana ao ES em 2015. Dez anos após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), que matou 19 pessoas e despejou 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos ao longo do Rio Doce, as cidades por onde o rio passa no Espírito Santo ainda carregam as marcas do maior desastre ambiental do país. Foi na divisa dos estados, na ponte Jones dos Santos Neves, em Baixo Guandu (ES), que centenas de moradores se reuniram para vigiar o que chamavam de "a chegada da lama". 📲 Clique aqui para seguir o canal do g1 ES no WhatsApp A estrutura, que serviu de ''torre de vigia'' em novembro de 2015, virou símbolo de um desastre e até hoje vê um Rio Doce doente. À primeira vista, o rio voltou a correr com águas mais claras. Mas a lama segue ali, escondida no fundo, ainda tirando o sustento, o lazer e as memórias de milhares atingidos. Coloração forte dos rejeitos já não é mais vista na superfície, mas está no fundo do rio Initial plugin text Uma década depois, o g1 voltou às cidades capixabas atingidas para ouvir quem ainda vive os efeitos da tragédia. Para pesquisadores, o Rio Doce é um "paciente crônico" e a contaminação segue em atividade no rio e no mar. A mancha de lama levou 11 dias para chegar ao Espírito Santo. Não era possível saber quando exatamente a lama chegaria. As previsões mudavam dia após dia. “Eu fui na ponte, mas no fundo eu não tinha noção da gravidade. Foi só na hora mesmo que eu vi quão grave era o problema”, lembra a aposentada Solene Aparecida da Silva, de 63 anos, moradora de Baixo Guandu. LEIA TAMBÉM: Rio Doce, no ES, é um 'paciente crônico' dez anos depois do desastre de Mariana Mariana, 10 anos: famílias atingidas tentam retomar vida em novas casas, mas lamentam danos irreparáveis Multidão observando se a lama do Fundão chegaria ao ES, e a mesma ponte atualmente Initial plugin text Solene contou ainda que ficou paralisada e não conseguiu comprar água mineral. "Já existia uma corrida muito grande para compra de água mineral. Quando eu fui comprar, não tinha em lugar nenhum", completou. Até hoje, ela diz não confiar na água que sai do rio. “A gente vive com muito medo, porque a médio e longo prazo todos vamos ter problemas por conta dessa lama.” "Não tem futuro no Rio Doce" Em Colatina, cidade vizinha também banhada pelo Rio Doce, a pescadora Andressa Sacht cresceu às margens do rio. Dez anos depois, ela ainda vê o mesmo cenário de desolação. “Estou na luta há 10 anos. Não tem futuro no Rio Doce e isso me preocupa muito. A gente sabe que não vai melhorar, as gerações futuras não vão ter a mesma infância que a gente teve”, disse. Ela lembra com saudade dos dias em que o rio era ponto de encontro e sustento. “As pessoas jogavam bola, as crianças pescavam de varinhas. Fazíamos churrasco na beira do rio, juntava todo mundo. Era a maior alegria e acabou.” Colatina correu contra o tempo para não faltar água Moradores de Colatina, faziam fila para conseguir água potável em novembro de 2015, época de desabastecimento por conta da lama no Rio Doc Arquivo/ TV Gazeta Como a lama levou quase 15 dias para chegar a Colatina, que tem 120 habitantes, a cidade conseguiu se organizar para que não faltasse água. Apesar disso, os transtornos os efeitos foram ainda maiores do que em Baixo Guandu, com seus 29 mil moradores. O abastecimento, que depende exclusivamente do Rio Doce, precisou ser interrompido, e a população passou a viver dias de racionamento. Baldes, galões e caixas d’água viraram parte da paisagem da cidade. Aposentado Mario Pereira da Silva, de 76 anos, morador de Colatina, no Espírito Santo Célio Ferreira/ TV Gazeta Carros-pipa chegavam em pontos estratégicos, e filas se formavam desde as primeiras horas da manhã. Morador de Colatina há mais de 70 anos, o aposentado Mário Pereira da Silva, recorda da mudança repentina. "Nós carregamos muita água. O bairro todo ficou sem água aqui. Não tem confiança na água do rio. A gente só usa para cuidar da casa", contou. Rio perdeu o sustento e o lazer Com o avanço da lama, as comunidades que vivem às margens do rio perderam mais do que o abastecimento: perderam a memória, o lazer e o sustento que vinha da pesca. "A gente tinha um banco de areia muito grande aqui. As pessoas jogavam bola, as crianças pescavam de varinhas. Fazíamos churrasco na beira do rio, juntava todo mundo. Era a maior alegria e acabou. Muita gente vai buscar lazer fora daqui”, contou a pescadora Andressa Sacht. Ponte sobre o Rio Doce em Colatina 10 anos depois Initial plugin text Moradores de Baixo Guandu, Espírito Santo, ocuparam ponte em novembro de 2015 para esperar lama no Rio Doce Francisco Carlos Gonçalves/Arquivo pessoal Moradora da comunidade de Maria Ortiz, em Colatina, Andressa nasceu e cresceu às margens do Rio Doce. Filha e esposa de pescadores, construiu a vida em torno do rio. Quando a lama chegou, tudo isso se perdeu. "Estava sendo uma tristeza enorme. Quando bateu aqui, foi muito forte pra gente. Aquela desilusão de nem botar o pé mais dentro da água, de nunca mais poder pescar", completou. Em Linhares, o encontro entre o rio e o mar Pescador Darcy morador de Regência em Linhares, no Espírito Santo Raphael Verly/ TV Gazeta O distrito de Regência, em Linhares, onde o Rio Doce encontra o oceano, era conhecido pela pesca e pelas ondas que atraíam surfistas. Quem frequentava a região viu a lama chegar e transformar o cenário. A pesca foi proibida, as pousadas fecharam e o turismo quase desapareceu. "Eu fiquei muito triste quando isso começou, porque pensei como a gente ia viver. Essas redes estão aqui paradas 10 anos, porque eu não posso mais pescar, porque se eu pudesse estava aqui", contou o pescador aposentado Darcy Xavier. Mar de Regência em Linhares, 10 anos depois Initial plugin text Sem poder fazer o que mais gostava, o também ex-pescador, Zé de Sabino, passou a se dedicar ao trabalho na roça. "Eu comecei a produzir cacau. Tem a roça, tem o cacau para eu colher, mas não é como quando eu saía no mar e pescava peixe, robalo, tubarão", afirmou. Para Sabino, ficaram apenas as memórias de quando podia pescar. "Eu sou um homem triste, eu estou aqui, consigo sorrir, mas não é um sorriso de felicidade, é de tristeza. Tiraram de mim o sonho e a liberdade e eu não sei até onde isso vai", completou. José Sabino, ex pescador, passou a trabalhar na roça após proibição da pesca no Rio Doce, no Espírito Santo Raphael Verly/ TV Gazeta Dez anos depois: pesquisas continuam Dez anos depois, as pesquisas ainda indicam que metais estão presentes nas amostras coletadas no rio e no mar. Quatorze pontos são monitorados trimestralmente no Rio Doce, além de outros cinco no litoral do Espírito Santo. Em alguns deles, todas as amostras coletadas até hoje apresentaram material de rejeito. "O quadro de contaminação ainda é grave, a tragédia não acabou, é uma tragédia em andamento. Mais da metade do rejeito que saiu da barragem continua no leito do rio ou está depositado no mar", explicou Joca Thome, oceanógrafo e Coordenador Nacional no Centro Tamar-ICMBio. O que diz a Samarco O Novo Acordo do Rio Doce, homologado pelo Supremo Tribunal Federal em 2024, prevê R$ 170 bilhões para reparar e compensar os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. A Samarco informou que desse total: R$ 100 bilhões vão para os governos federal e estaduais, em ações de saneamento, saúde e desenvolvimento social. R$ 32 bilhões são de responsabilidade direta da Samarco, voltados a indenizações individuais, reassentamentos e recuperação ambiental. E outros R$ 38 bilhões já foram aplicados pela Fundação Renova, que está em fase de liquidação. Em relação às indenizações individuais, mais de 288 mil pessoas já foram beneficiadas, com R$ 14 bilhões pagos até setembro de 2025. Só no Espírito Santo, 120 mil pessoas receberam R$ 6,2 bilhões. A empresa informou que os pagamentos devem ser concluídos até dezembro de 2026, e que não há mais novas portas de indenização abertas, apenas análises em andamento. A Samarco disse ainda que o acordo firmado em 2024 inclui ações de monitoramento contínuo da qualidade da água, sedimentos e fauna aquática. Também são realizados estudos para avaliar a dinâmica natural de recomposição do ecossistema costeiro. A empresa retomou suas atividades operacionais de forma gradual, em dezembro de 2020, sem utilização de barragem para disposição de rejeitos. Números da tragédia da Samarco em Mariana Arte/ g1 Vídeos: tudo sobre o Espírito Santo Veja o plantão de últimas notícias do g1 Espírito Santo